Por Alysson Muotri
Um encontro internacional de pesquisa envolvendo células-tronco, em Yokohama, no Japão, marcou na semana passada os dez anos da Sociedade Internacional de Células-Tronco, da qual participo desde sua origem. Em retrospectiva, o primeiro encontro não tinha mais do que cem participantes, a maioria dos EUA, que se reuniam sempre na mesma sala. Dez anos depois, são mais de 4 mil afiliados do mundo todo, e os encontros acontecem em diversas salas de forma simultânea. Um grande salto para a grande promessa da medicina do século 21.
A celebração dos dez anos contou com a presença do imperador e da imperatriz japoneses, em uma cerimônia que transferia a presidência da sociedade, do neurocientista Fred Gage para o pesquisador japonês Shinya Yamanaka. Shinya ficou popular com seu trabalho sobre a geração de células-tronco pluripotentes induzidas (conhecidas como iPS cells, em inglês) através da reprogramação celular. A pesquisa permite, entre outras coisas, a criação de tipos celulares especializados de pacientes para triagem de drogas. Shinya é um forte candidato ao prêmio Nobel nos próximos anos. A presença do imperador mostra o sério investimento do Japão nessa área. Difícil imaginar algo semelhante acontecendo em outros países.
Participo desses encontros sempre que posso e tento colaborar com a sociedade porque acredito que as células-tronco precisam realmente de uma representação internacional. Das atitudes que me agradam, destaco a grande quantidade de informação disponível sobre o assunto na página da sociedade. Além disso, existe um site que procura instruir pacientes e familiares sobre como agir, o que perguntar e como avaliar possíveis tratamentos experimentais. A ideia é educar o público leigo para que se aumente a massa crítica a respeito de eventuais terapias não comprovadas cientificamente, visando reduzir o famigerado “turismo médico” que se criou em torno das células-tronco.
Dos trabalhos apresentados este ano, destaco a atuação do grupo de Hiromitsu Nakauchi, da Universidade de Tóquio, sobre a geração de rins transgênicos. O grupo apostou em porcos quiméricos para mostrar que é possível criar órgãos inteiros e funcionais a partir de células-tronco pluripotentes. Para isso, os pesquisadores transplantaram células-tronco de porcos normais em blastômeros (estágio embrionário), gerados a partir de um casal de porcos que carregam uma alteração genética que os impede de desenvolver os rins.
Os embriões quiméricos (carregando células de origens diferentes) foram então transferidos para o útero de uma porca com gravidez induzida. Os filhotes nasceram com rins funcionais e foram capazes de encher a bexiga e urinar normalmente. As células-tronco transplantadas foram as responsáveis pela criação dos rins nos animais geneticamente programados para nascer sem os rins. O grupo pretende agora repetir o ensaio usando células-tronco de pluripotência induzidas de macacos. Quando indagado sobre o uso de células-tronco pluripotentes induzidas a partir de humanos, o grupo respondeu que a proposta está sendo analisada pelo comitê de ética da universidade.
O benefício para a humanidade de se produzirem rins e outros órgãos humanos em porcos é enorme: acabaria com as filas de transplante e salvaria milhões de vidas. No entanto, a questão ética merece ser estudada. Acredito que animais quiméricos, isto é, carregando células-humanas em diversos tecidos do corpo, ainda causem estranheza para os leigos. Mas a verdade é que cientistas vêm fazendo esse tipo de experimento há décadas. Quando em 2005 mostrei que células-tronco embrionárias humanas poderiam integrar-se funcionalmente no cérebro de camundongos, depois de um transplante in-utero em camundongas grávidas, recebi uma série de e-mails repudiando esses experimentos.
No topo da lista de argumentos, estava a ideia de que neurônios humanos nos cérebros de roedores poderiam aumentar algumas funções cognitivas nesses animais, gerando algo semelhante à consciência humana, por exemplo. Baseando-me numa série de evidências sobre o desenvolvimento do sistema nervoso humano, diria que isso é praticamente impossível.
Mas a real preocupação do quimerismo no caso dos porcos é a eventual transmissão de gametas humanos pelos animais, gerando organismos deformados, meio homem, meio porco (como na foto abaixo). Existem formas de avançar o conhecimento científico sem infringir a ética ou a moral humana vigentes (sim, ética e moral variam dramaticamente com o tempo). Evitar que os animais cruzem é uma opção simples.
As possibilidades de uso de células-tronco são limitadas apenas pela criatividade humana. Os encontros internacionais com pesquisadores da área são locais de intensa discussão e reflexão dos benefícios e perigos dessa tecnologia que está ainda na infância. O futuro da medicina está, sem dúvidas, nas células-tronco.