Jornal da Tarde

Matéria Jornal da Tarde - 11/04/2010

Pai de Nathan, de 9 anos, o gerente de loja Fernando Channoschi vai leiloar uma guitarra doada pela banda Inimigos do HP e um livro sobre os bastidores do filme Chico Xavier, autografado pelos artistas do longa, para arrecadar cerca de R$ 140 mil e, assim, dar continuidade ao tratamento do filho na Flórida (EUA). O objetivo desta segunda fase, explica o pai, é “ensinar” as células-tronco injetadas na China a trabalhar. A ‘lojinha’ do Nathan vende também camisetas, a R$ 15. M.C.


Famílias lutam para ir à china

Mesmo sem respaldo  científico, tratamento com células-tronco tem atraído pais de crianças  com paralisia cerebral, que usam a internet para arrecadar dinheiro.

Marici  Capitelli, marici.capitelli@grupoestado.com.br

Movidos pela  esperança de conseguir tratamento com células-tronco na China, pais de  crianças com doenças incuráveis, como paralisia cerebral, estão fazendo  uma maratona para arrecadar dinheiro. Além de criar sites divulgando a  mobilização, as famílias fazem rifas, vendem camisetas, leiloam objetos  doados por artistas e jogadores de futebol, fazem empréstimos e contam  com a solidariedade de amigos e desconhecidos.

Enquanto as  famílias se desdobram para levantar o necessário, que varia de R$ 40 mil  a mais de R$ 100 mil, os cientistas brasileiros condenam de maneira  categórica o tratamento. Segundo eles, faltam informações sobre os  benefícios e efeitos colaterais das aplicações de células-tronco, que  não têm respaldo científico. “É uma temeridade”, diz a geneticista Lygia  da Veiga Pereira, chefe do Laboratório Nacional de Células-Tronco  Embrionárias da USP.

Dos doentes brasileiros que já se submeteram ao tratamento, há relatos  de progressos da saúde e também de evolução mais lenta da doença (veja  nesta página). Há estimativa de que 20 crianças brasileiras já tenham  feito as aplicações na China, enquanto outras 40 campanhas para  arrecadar o dinheiro necessário para o tratamento estão em andamento no  País e mais 15 famílias aguardam resposta dos médicos chineses para  iniciarem a campanha.

A internet é o ponto de partida das  famílias, que buscam o tratamento sem prescrição de médicos brasileiros -  é nela que encontram informações sobre as aplicações e concentram a  divulgação das suas campanhas.
Criadora de um site que congrega todas as campanhas, Sandra Domingues diz que todos os dias ao  menos uma família pede informações sobre o tratamento. 
Em um trabalho  voluntário, ela os encaminha para o representante da empresa no Brasil, a  chinesa Beike Biotecnologia, que afirma fazer aplicações de  células-tronco de cordão umbilical desde 2001 e já ter atendido 6 mil  pessoas de vários países. “É um movimento que cresce na internet. As  pessoas estão sonhando com o tratamento”, diz Sandra.

‘Menina  melhorou’, diz pai
Ícone para essas  pessoas que buscam nas  injeções uma esperança, a menina Clara, de 2 anos, foi a primeira  brasileira com paralisia cerebral a fazer o tratamento, em 2009. Segundo  a família, que mora no Recife (PE), até então ela não tinha força  muscular, não conseguia engolir comida sólida e tinha dificuldade para  beber água. Após o tratamento, diz o pai Carlos Pereira, o resultado foi  surpreendente, com uma melhora global.
Depois  disso, Pereira  virou representante da Beike no Brasil. “A minha ideia quando a Clara  melhorou foi dar uma satisfação para todas as pessoas que contribuíram  com a nossa campanha. O assédio e interesse das outras famílias foi um  efeito colateral.” Pereira diz que apenas traduz os documentos e exames  para elas. As críticas dos médicos brasileiros, segundo ele, são  resultado da falta de informação. “Por que não pegam um avião e vão  conhecer o trabalho antes de dizer que não concordam?”, reclama.

Em  resposta às negativas científicas, as famílias são unânimes ao  justificar a busca pelo tratamento chinês: qualquer melhora na qualidade  de vida dos filhos vale a pena, mesmo que o preço seja viajar, sem  garantia de sucesso, até o outro lado do mundo.


Pais sofrem por  expor os filhos em campanhas

O constrangimento com tamanha exposição, tendo  suas vidas abertas na internet, é uma sensação comum às famílias que  estão em campanha para arrecadar dinheiro para levar os filhos à China.  Da mesma maneira que recebem solidariedade, também são alvo de críticas.

“Fazer  a campanha é um processo super desgastante, porque estamos expondo  nossa filha. Foi muito difícil no começo, porque eu e meu marido somos  muito tímidos”, diz a professora Elisabete Lucas Machado, de 40 anos,  que mora na Vila Prudente, zona leste, e batalha pela filha Gabrielle,  de 6.

Colegas de trabalho estão rifando  objetos para conseguir  comprar uma televisão, também para ser rifada. Alunos de outro colégio  estão fazendo cofrinhos. Uma associação vai fazer um evento beneficente.  “Nós estamos copiando o que os outros pais fazem”, conta.

Há  relatos de melhoras e de frustração

Os que se submeteram ao tratamento chinês,  recebendo injeções de células-tronco na veia, na medula espinhal ou até  no cérebro, trazem da China histórias de frustração e de esperança.
Portador   de esclerose lateral amiotrófica, doença que vai destruindo os  neurônios e atrofiando os músculos, o comerciante aposentado Laerte  Colling, de 44 anos, diz que não teve resultados com o tratamento, um  ano e cinco meses depois de tê-lo feito em um hospital chinês, entre  outubro e novembro de 2008. “Não vi melhora. No último ano, a doença  evoluiu lentamente, mas evoluiu”, conta. Para ele vai ficar sempre uma  incógnita. “Não sei como estaria se não tivesse feito.”

A família  de Laís, de 3 anos, voltou esperançosa. Portadora de paralisia  cerebral, a menina voltou da China em 16 de março, depois de ter feito  oito aplicações. O pai, o contador Leomar Paulo Granetto, de 36 anos,  diz que ele e a mulher estão “muito satisfeitos” com o resultado – a  filha, diz, não está mais totalmente dependente da sonda para comer. Ela  se alimenta seis vezes ao dia com dieta especial e em 70% das refeições  não usa mais a sonda. “É uma grande conquista”, diz ele, que mora em  Boa Vista de Aparecida (PR).

Ainda não faz um mês que Stephanie,  de 10 anos, que tem paralisia cerebral, chegou da China. A mãe, a  comerciante Nica Harms, de 33 anos, se diz muito feliz com os resultados e pretende retornar com a filha em fevereiro. “Antes, a alimentação  dela tinha de ser toda batida no liquidificador, agora eu amasso a  comida e ela consegue comer, já engordou dois quilos. Ela não dobrava os  cotovelos, agora consegue dar um abraço.”

Laura da Penha, de 27  anos, voltou da China com o filho Caio, de 5 anos, em janeiro. Para ela,  o resultado tem sido positivo. Laura diz que o menino, com paralisia  cerebral, tinha de 90 a 100 pequenas convulsões ao dia. Agora, são de 10  a 15. “Para nós, foi maravilhoso”. Ela já está fazendo nova campanha  para mais aplicações. A família nem quitou as dívidas que adquiriu com a  primeira viagem.

Nenhuma das três crianças voltou ao médico que a  tratava no Brasil desde que regressou da China. M.C.

Médicos dizem que terapia não tem base  científica

Os cientistas brasileiros, embora se  solidarizem com as famílias, têm uma chuva de críticas aos tratamentos  oferecidos em sites. São mais de 200 clínicas e hospitais chineses que  oferecem tratamentos com células-tronco. “Sou solidária no desespero  delas, mas meu papel como cientista é repudiar esse tratamento  veementemente”, diz a geneticista Lygia da Veiga Pereira, chefe do  Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias (Lance), da USP.

Segundo   Lygia, a China não é transparente quanto aos resultados. “Eles só  divulgam o que interessa, sem dizer o que estão fazendo”. Com relação  aos resultados positivos relatados pelas famílias, ela diz que não é  possível saber se são resultantes do tratamento ou de outras terapias  feitas em conjunto, como fisioterapia e acupuntura.

A  geneticista ressalta que não se sabe ao certo o que as injeções que  estão sendo aplicadas contêm. “As famílias estão pagando caríssimo para  serem cobaias.”

Pesquisadora do Banco de Sangue de Cordão  Umbilical, da Unicamp, a médica hematologista Angela Cristina Malheiros  Luzo afirma já ter sido consultada por pessoas em busca dos tratamentos  na China. “Disse claramente que não deveriam ir, mas o apelo dos  chineses é muito forte e as famílias perdem a cabeça com essa luzinha no  fim do túnel.”

Para Ângela, a China não tem compromisso ético  com os resultados. “Não sabemos a fonte das células e nem no que elas  irão se transformar. Não faz sentido se submeter a um tratamento desse”,  diz.

Fonte: Jornal da Tarde